sábado, 22 de abril de 2017

Uma carta vinda da Índia (A letter from India by Mariette Raina*)

Querida “Never Apart”,

Cá estou eu novamente na Índia. Quando o solo indiano penetra seu ser, torna-se algo como uma fragrância de perfume, misteriosamente irresistível,  que se quer perseguir. Cheguei em Delhi e imediatamente embarquei num trem em direção a Gwalior.

No mesmo dia da minha chegada, consegui ir até o forte – um dos importantes monumentos turísticos da região, estratégico para a ascensão e queda de inúmeros impérios desde que foi construído, no Século VIII. Conforme me aventurava entre os quartos do forte, um guia turístico gentilmente me ofereceu seus serviços e, logo depois, um jovem casal indiano nos fez companhia. Juntos revivemos a história do forte, nos comunicando um pouco em inglês e um pouco em híndi.  Entre perguntas e respostas,  vejo o lugar se transformar em um majestoso e vibrante salão de baile e concerto, depois num espaço para digníssimos e marajás, seguido pelos quartos das oito mulheres do rei e por fim o quarto de tortura de Moghul. Na minha imaginação posso ver as cores da atmosfera festiva, através das marcas dos espelhos que ainda estão nas paredes, e imagino o ambiente refletido na iluminação das lamparinas à óleo, coloridas nuances de uma noite de espetáculos.

De novo e mais uma vez, me dou conta do quão profundamente passado e presente se fundem – um sentimento que me é familiar quando estou em casa em Paris. A noite no hotel, me chama atenção um sofisticado casal inglês que exala o perfume de uma vida repleta de importantes experiências propositalmente cultivadas. Como na Índia, em Israel ou outras partes do mundo, você encontra pessoas com suas histórias individuais, cada um no seu microcosmo, fazendo parte de algo muito maior. É uma atmosfera que não tem nada a ver com idade.

Me sinto à vontade com meu guia e sinto que ele acha curioso meu entusiasmo por pedras antigas. Ele se oferece para me acompanhar pelo resto do dia. Os templos margeiam a estrada de terra, onde também jogam críquete,  os meninos da prestigiosa escola Gwalior.  As dependências dos professores da escola estão na rota para o Templo Sikh, onde poderemos comer.  Aqui, refeições são servidas durante todo o dia. Meu guia conhece todo mundo, o que me dá o privilégio de ser convidada para conhecer a cozinha. As refeições são preparadas em caldeirões gigantes – é maravilhoso! O chefe de cozinha é um Sikh com semblante generoso; suas sobrancelhas brilham com as pérolas de suor que gotejam sob seu turbante. Apesar de ser solteiro ele é casado com sua cozinha, dedicado a cuidar dela. Já seu irmão mais novo, de 23 anos, espera se casar nos próximos 2 anos. Ele me mostra fotos de sua prometida – um casamento arranjado pela família.

Já são 4 da tarde então me preparo para voltar para casa. Um jovem indiano, vestido com uma camisa xadrez e um chapéu fedora, pula na minha frente com sua moto. “Madame, quer uma carona? Quer que eu a deixe em algum lugar?” Sorrindo eu pergunto se a carona é de graça e monto atrás dele na moto, apoiando meus braços nos seus ombros. Em minutos e depois das perguntas normais sobre meu país e atividade, ele tinha me trazido para o centro da cidade e generosamente pagou para um rickshaw me levar ao hotel. Ainda que eu possa pagar pelo meu próprio transporte ele insiste em recusar meu reembolso, dizendo que eu sou uma convidada do país dele. Eu graciosamente agradeço e desejo boa sorte a ele. Quando chego no meu quarto, minha energia restante já era e por volta das 8 da noite caio num sono profundo.

As 3 da madrugada em ponto estou de pé, completamente acordada. A cidade está adormecida. Eu sento no meu tapete de yoga aproveitando a chance para uma sessão matinal. Exatamente às 5:30 da manhã o chefe de cozinha bate na minha porta. Ah sim, eu esqueci de mencionar o chef: ontem de manhã, logo depois do café da manhã, o chefe de cozinha gentilmente se ofereceu para me guiar por um tour nos jardins do hotel, ao fundo dos quais encontram-se três lindos templos. Nas paredes externas ainda tem traços da policromia remanescente dos antigos afrescos. Ele parece encantado com as coisas que chamam minha atenção e mais ainda com minhas tentativas de falar híndi, mas ele fica mesmo tocado com minha sinceridade para com a cultura indiana e indiretamente para com ele.  Os portais das paredes internas centrais estão fechados mas sou convidada a assistir ao “arti” na madrugada seguinte, quando o sacerdote honrará os ícones. Novamente as 5:30 da manhã em ponto o chefe de cozinha bate na minha porta e pegamos nosso caminho. O sacerdote já começou a cerimônia não-oficial. Dentro das paredes centrais tem um pequeno altar vermelho, decorado com inúmeras estatuetas das deusas – as nove mães e no centro uma escultura gigantesca de Hanuman, datada do século XVIII. Eu descubro as antigas pinturas que decoram as paredes e o teto,  dessa vez muito bem preservadas dentro das paredes eternamente fechadas onde a entrada de luz é escassa.  Fora dali o dia vai nascendo devagar.

São 8 da manhã e meu guia chega em sua moto. Nos preparamos para partir para um dia de visitas aos menos acessíveis e mais retirados templos. Quando subimos na moto o gerente do hotel oferece um capacete para o guia. Enquanto ele se vira para mim, eu espero que o guia vá me oferecer o capacete, mas estava errada. Ele apenas diz “está muito frio esta manhã” e prossegue cobrindo sua própria cabeça. Eu suponho que aqui na Índia, o capacete seja usado para manter a cabeça aquecida – o que até me parece adequado, considerando a hora gelada da manhã e a viagem ao ar livre na moto.  Felizmente o dia amanhece e o sol delicadamente aquece nossos corpos.

Atravessamos da cidade para a aldeia; a luz do sol vai deslizando pelo chão perseguindo as sombras e revelando o aroma especial do interior. Eu procuro guardar na memória tudo que vejo: na calçada, crianças uniformizadas indo para a escola de mãos dadas, um velho senhor enrolado em seu xale branco como uma estátua, um outro varrendo a terra vermelha acumulada e levantando ondas de poeira atrás de si, dois homens de braços dados, viajando num tuk tuk e um deles fazendo massagem na orelha do outro, uma mulher vestida num sari azul e enrolada num xale azul turquesa, um homem assoando o nariz nas mãos, vegetais no chão cobertos de pó, um rebanho de pequenas vacas atravessando a rua, crianças a correr descalças, as casas pintadas de azul celeste e rosa bombom, o esterco de vaca secando ao sol, mulheres trabalhando nos campos com seus saris coloridos que parecem flores em meio ao campo verde, anciões da aldeia com seus olhos brilhantes escondidos por trás de seus rostos magros e sua pele curtida de sol.

Lá está, distante, vejo Mitauli. Curiosamente, a maioria dos templos yoginis, sempre reconhecíveis pela estrutura circular e sem teto, estão construídos nas montanhas.  De longe Mitauli forma um círculo majestoso. Uma vez lá, percebo que algumas partes do templo foram reconstruídas e está muito bem preservado e, a julgar pelos vestígios de rituais e de incenso fresco, ainda recebe algumas discretas atividades.  Os templos yoginis estão relacionados a tradições secretas sobre as quais sabemos muito pouco. Percebo que nem os guias e nem os locais que se juntaram a nós sabem de fato qual era o propósito daquele templo. No máximo aprendi que esse templo é chamado “Templo Yogini 64” apesar de abrigar 71 nichos.  Um dos guias me explica que yoginis eram poderosas deusas e as pessoas vinha ao templo para receber a energia delas.

Passamos a tarde visitando três templos na região. É lindo; me sinto em casa. Às vezes eu lamento não ter prestado mais atenção nas aulas de arqueologia, mas na época eu não me interessava tanto pelas antiguidades e eu ainda não tinha me dado conta de que a história e o significado esotérico são dois lados da mesma moeda e o estudo de um leva, inevitavelmente, ao conhecimento do outro. Entre as visitas aos templos paramos para beber um chai, conversar com os locais e até aprender a dirigir a moto nas trilhas indianas. Meu guia é adorável e um bom professor: ele conversa comigo quase todo o tempo em híndi, mas devagar e pacientemente, o que me força a estar num estado de constante atenção ao mesmo tempo que absorvo um bocado de informação em um só dia. Lá pelas 3 da tarde decidimos voltar para casa. Está quente e como ele não quer o capacete nessa hora, eu o coloco. Mudança de planos no último minuto: sou convidada para comer com a família do irmão do meu guia e devolver a moto dele.

Quando chegamos, todos me olham com seus sorrisos tímidos e cheios de curiosidade como se um evento especial estivesse prestes a acontecer. As crianças se escondem e eu sou convidada a descansar em uma das camas enquanto a comida está sendo preparada.  Falamos em híndi, bebemos chá e o tempo voa. Com exceção do meu guia ninguém fala inglês, então ou ele traduz para mim ou simplesmente deixa que eu me vire com a sua família. A comida é servida: chapatis com guee e sabji. Então chega a vez da dona da casa comer também. Finalmente, quando todos comeram, a jovem me oferece óleo e um pente – eu imagino que seja a hora de nos arrumarmos. Ela me empresta um batom rosa-fúcsia que pode ficar lindo no tom da pele indiana mas que na minha pele clara fica um pouco exagerado.

Enquanto isso, os meninos estão fazendo seus cadernos para a escola. Por mais de uma hora eu os vejo costurar papelão cortado e folhas soltas com fitas vermelhas, criando um caderno caseiro de 80 páginas. A capa de papelão é devidamente protegida por um plástico da embalagem de fraldas de bebê ou jornais indianos. Confesso que estou sem palavras; cá estamos nós, bem longe da tradicional corrida anual às lojas de materiais escolares para comprar tudo para o primeiro dia de aula, tão típica no ocidente.

São 4:30 da tarde – hora de pegar a estrada. Dessa vez o irmão do meu guia vai dirigindo, o guia vai no banco de trás e eles me oferecem uma carona. Chegamos à estação de trem onde, por um milagre, consigo um ticket no último minuto. Amanhã eu parto para Varanasi para encontrar brevemente meu professor de sânscrito e alguns amigo. Uma visita rápida, por uma semana, antes de pegar meu caminho para Mysore.

Os cinco dias desde que cheguei parecem dois meses. Ontem encontrei um casal de ucranianos que me perguntou se acho difícil viajar sozinha. Eu respondi que viajar sozinha é igual viajar com amigos que você ainda não conhece. Cada encontro revela algo mágico e não planejado, especialmente se você está na Índia. Não tem mistério quando nos conhecemos.

Esse mês não há o que concluir. As palavras se encarregam disso, e por trás delas se esconde um vasto mundo que podemos sentir simplesmente fechando nossos olhos e nos deixando capturar por elas. Já está aqui, nesse exato momento, para além das limitações de tempo e espaço. As histórias são apenas um perfume que nos lembra da presença da flor, da beleza – arte e espiritualidade. Em última instância nenhum dos dois existem; há apenas a vida, momento a momento.

Estou pegando a estrada novamente e em algumas horas estarei no trem para Varanasi, em seguida Mysore, Mumbai e depois quem sabe... nos vemos em um mês.

Hari Om,
Mariette/Sara

  * Texto original escrito para a revista "Never Apart", do Canadá. Veja o Texto original com fotos maravilhosas! :)

Mariette é graduada em Antropologia pela Universidade de Montreal. Ensina yoga alinhada com a filosofia não dualista do Shivaismo Tântrico da Cachemira. Ela viaja regularmente para Índia para continuar sua pesquisa sobre as tradições esotéricas dos Tantras. 

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